Jornal A Semana

HOMEM DEITADO NA CALÇADA

  • Douglas Varela
  • 15/08/2019 11:07
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Eu poderia começar este artigo com o título “a banalização do sofrimento”, mas achei impróprio. Poderia nominá-lo “falta de sensibilidade de pessoas para com outras pessoas”, mas achei julgativo. Quem sabe “dicas para quando você encontra uma pessoa caída na rua”, mas o achei utilitário. Então deixei esse aí, e cada qual dá o subtítulo que quiser. Melhor, não?

O que pretendo nesse espaço é, na verdade, relatar uma experiência, tendo como pano de fundo o conto do escritor paranaense Dalton Trevisan, “Uma vela para Dario”.

Passava nesta manhã de domingo, dia 4 de agosto, com frio de 4 graus, por uma das ruas que conduz ao Mercado Municipal de Curitiba, quando, deitado na calçada, estava um senhor sob um cobertor listrado, imóvel. Uma pessoa tirava um doce da mochila e, atirando perto da cabeça, tocou-o e lhe disse: “Coma!”. Dei-lhe o nome provisório de Pedro (significando pedra, calçada).

Seria parente, amiga? Sumiu na travessia das ruas próximas. Ele pouco se mexeu, vi sua mão ao pegar o doce. Estava vivo! Fiquei imaginando o frio que sentia, a necessidade de um banho quente e, se estivesse doente, de medicamentos, quem sabe da família...

Havia ali menor movimento do que nos dias de semana, pois na rua onde se encontrava não se via o vai e vem dos estudantes da UFPR - Universidade Federal do Paraná (Reitoria), no centro de Curitiba. Um dia típico para alguém doente morrer de frio, principalmente se ali tivesse passado a noite toda.

No conto “Uma vela para Dario”, várias pessoas se aglomeram quando Dario cai e “bolhas de espuma surgem no canto da boca". Pedro ainda pode ter esperança, mas ninguém se aglomera, aquela posição nada diz aos passantes.

Dalton Trevisan conta que as pessoas tentam dar ajudas a Dario, mas “a velhinha de cabeça grisalha grita que ele está morrendo”. Concordam em chamar uma ambulância, na impossibilidade, chamam o táxi, mas quem pagaria o táxi? “É largado na porta de uma peixaria”. “Um menino [...] descalço vem com uma vela, que acende ao lado do cadáver. Parece morto há muitos anos, quase o retrato de um morto desbotado pela chuva”.

Quando uma pessoa sentada ou deitada na rua pede aos passantes apenas uma refeição no restaurante mais próximo, um café da manhã na padaria da esquina, a intervenção pessoal é acolhimento louvável.

Conheço um senhor que, ao ser abordado por uma pessoa com fome, pergunta: “O que mais posso fazer por você?". Isso ocorre, principalmente, nos finais de semana e, de modo mais singular ainda, quando segue para a missa dominical.

No decorrer das tentativas de ajudarem Dario, somem seus pertences, o guarda-chuva, o cachimbo, os sapatos, o alfinete de pérola na gravata. É pisoteado 17 vezes pelas pessoas que se alarmam quando a polícia chega e, mesmo estando ali, não consegue identificá-lo, pois os documentos também não são encontrados.

Melhor chamar o serviço especializado, no caso a FAS- Fundação de Ação Social. Diz a atendente: “Já registrei sua solicitação e estou encaminhando o atendimento para o endereço solicitado”.

Se a sociedade paga impostos, espera que serviços lhe sejam disponibilizados. Mas quase sempre é necessário requerê-los, por inteiro, para a realidade do dia a dia, para que cheguem aos destinatários. Segundo a FAS, além de acolher a pessoa, ela recebe assistência necessária para retornar ao endereço de origem ou ser encaminhado conforme suas indicações.

No entanto, enquanto ela não chega, de uma hora para outra, tudo pode acontecer com “um homem deitado na calçada”. Dario e Pedro podem ter mais coisas em comum do que se imagina.

 


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